sábado, 30 de julho de 2011

... o ser dentro de mim...


"Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. O seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que o cavalo não tem nome. Basta chama-lo e acerta-se logo com o nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: as pessoas enganam-se e pensam que são elas mesmas que estão a relinchar de prazer ou de cólera, as pessoas assustam-se com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."

in adaptação de “uma aprendizagem ou o livro dos prazeres de Clarice Lispector