domingo, 16 de janeiro de 2011

Perdoados serão os teus remotos instintos súbitos, desde que me sirvas eternamente de teu mel

Elegia a uma pequena borboleta


Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!




De: MEIRELES, Cecília. “Retrato natural”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.

3 comentários:

  1. Que lindo!!!
    Beijos doces Desirelle

    {umbra}_MD

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  2. Rsrs... Que bom que gostou! Eu leio e releio... e sempre fico emocionada.
    Por mais simples que posso ser o tema, me impressiona essa coisa magnifica do encantamento que a poesia tem em descortinar instantes das nossas vidas. Dificilmente não se encaixa em uma de nossas emoções vividas... Principalmente qdo ser refere a beleza de pequenos instantes de amor ou descoberta do Eu interior. Neste caso... tem horas que me sinto tão borboleta...rs. pisc*

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  3. Linda...
    Venho aqui lhe ofertar um presente...um selo de qualidade, que esta lá no meu blog pra vc.

    Bjus no core!

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